“Tres pasiones, simples, pero abrumadoramente intensas, han gobernado mi vida: el ansia de amor, la búsqueda del conocimiento y una insoportable piedad por los sufrimientos de la humanidad. Estas tres pasiones, como grandes vendavales, me han llevado de acá para allá, por una ruta cambiante, sobre un profundo océano de angustia, hasta el borde mismo de la desesperación” — Bertrand Russell

17/2/17

Eric Hobsbawm: vida e obra de um historiador singular

Eric Hobsbawm ✆ James Hyman
Bruno Leal

Um giro pelo noticiário nacional e internacional neste dois de outubro de 2012 evidencia o enorme reconhecimento que Eric Hobsbawm conquistou ao longo de quase oito décadas dedicadas ao estudo da história. A morte do historiador britânico, ocorrida ontem, na Inglaterra, aos 95 anos, foi capa dos principais jornais do mundo. Hobsbawm, que estava internado no Royal Free Hospital, em Londres, morreu em decorrência de uma pneumonia.
Hobsbawm: o historiador
Eric Hobsbawm está entre os historiadores britânicos mais importantes e influentes do século XX. Como docente, foi um profissional dedicado e fiel. Atuou praticamente toda a vida na mesma instituição de ensino, o Birkbeck College, em Londres, onde foi admitido em 1947. Em termos historiográficos, esteve ao lado de nomes como E.P. Thompson, Raymond Williams e Christopher Hill, uma bem-sucedida geração de historiadores de esquerda que rompeu com uma leitura ortodoxa do marxismo, excessivamente economista, determinista e desprovida de conexão com a prática política. Juntos, esses historiadores conseguiram introduzir na escrita da historia a visão do homem simples, fazendo aquilo que muitos chamaram de “história vista pelos debaixo” ou “história dos debaixo” (History from bellow, no original).

Hobsbawm não fez parte diretamente, mas também acompanhou a reestruturação dos historiadores de esquerda em torno da revista “New Left”, na década de 1950, importantíssima no contexto político e intelectual do pós-guerra. Um dos seus trabalhos mais importantes se intitula “A Invenção das Tradições”, que organizou em parceria com o historiador Terence Ranger. O livro inovou ao pensar a “nação” e “nacionalidade” como constructos sociais e, principalmente, culturais. A tradição para os dois autores seria a base desse sentimento difusão quase naturalizado em nosso mundo contemporâneo. Também fez bastante sucesso o seu livro “História Social do Jazz”, em que privilegia o lado social do gênero musical, e “A Era dos Extremos”, no qual avalia o “longo século XX”. Este, a propósito foi o seu livro mais vendido no Brasil: 227 mil exemplares, tornando-se um dos best-sellers da editora Companhia das Letras. Escreveu ainda clássicos da historiografia, como “Nações e Nacionalismos desde 1870”, “Mundos do Trabalho”, “A Era das Revoluções”, “A Era do Capital” e “A Era dos Impérios”, “Sobre história”, entre tantos outros. No Brasil, seu último livro foi publicado em 2011, “Como mudar o mundo”, uma coleção de ensaios, também da Companhia das Letras. Em todos os seus textos, o autor sempre demonstrou domínio total do conteúdo e uma incrível erudição. O historiador Christopher Hill disse certa vez, brincando, que nada se podia ensinar ao colega Eric Hobsbawm. “Ele já sabia de tudo”.

Afonso Carlos Marques dos Santos, antigo professor de Teoria de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falecido em 2004, fez certa vez uma síntese bastante original da historiografia feita por Hobsbawm, destacando uma outra característica do historiador inglês – a coragem para desafiar paradigmas do marxismo:
É evidente que Hobsbawm orientou a sua construção historiográfica a partir de uma ambição totalizante, muito cara ao marxismo, mas soube fazê-lo com sensibilidade, ampla cultura geral e abertura para novas formulações oriundas de outras tendências historiográficas. Abertura que deve ter desagradado àqueles que, do lado de cá do Atlântico Sul, vivem incomodados com o que chamam “modismos pós-modernos” ou “desvios irracionalistas” das temáticas clássicas da ortodoxia marxista. Na introdução de “A Era dos Impérios” Hobsbawm usou como epígrafe uma passagem de Pierre Nora em “Les Lieux de Mémoire”, onde a história aparece como “a sempre incompleta e problemática construção do que já não existe”. Nesta citação, Nora, ao demarcar as distinções entre memória e história também afirma: “A memória sempre pertence a nossa época e está intimamente ligada ao presente eterno; a história é uma representação do passado”. Hobsbawm , ao problematizar o período 1875-1914, começa pela própria história da sua família valendo-se da memória para motivar a penetração num tempo que se fecha na altura do seu próprio nascimento. Recorre, portanto, a uma dimensão biográfica e individualizada da existência humana para falar de um tempo socialmente repartido. E é curioso que tenha lançado mão de Pierre Nora, uma personalidade central no campo da editoração de obras históricas na França. A heterodoxia de Hobsbawm certamente não deve ter agradado àqueles que, mesmo sem muita familiaridade com a produção historiográfica internacional, apontam de forma condenatória para o que seria a “nossa francofilia” no campo dos estudos históricos”.
Hobsbawm: o intelectual
Além de historiador, Hobsbawm tinha ainda uma faceta bastante rara, atualmente, entre profissionais da área: era um intelectual público bastante ativo. Nos atentados de 11 de setembro de 2001, por exemplo, foi um duro critico da explicação de “choque de culturas”, lançada por Samuel P. Huntington (1927-2008). Para Hobsbawm, o terrorismo deveria ser entendido a partir de uma relação de dominação e exclusão promovida pelo Ocidente ao longo dois últimos dois séculos. Foi ainda conselheiro de figuras importantes da política mundial, com Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, e participou com frequência de eventos públicos em todo o mundo. Esteve pela última vez no Brasil em 2003, quando foi uma das principais atrações da Festa Literária de Paraty (FLIP). A presença costumeira no espaço público talvez se explique pela própria experiência de vida do historiador. Nascido em Alexandria, Egito, no ano de 1917, Hobsbawm foi testemunha daquilo que ele chamou do “breve século XX”, um século bastante acelerado pela enormidade de acontecimentos impactantes em termos políticos e culturais. Filho de pai britânico e mãe austríaca, viveu muitos cenários e situações deste período de bem perto. Cresceu em Viena e, após a morte dos pais, judeus, mudou-se para Berlim. Após testemunhar a ascensão do nazismo de Hitler, mudou-se com o tio e a irmã para Londres. Acompanhou, então, a Segunda Guerra Mundial, a crise europeia, a Guerra Fria e toda uma gama de eventos históricos que transformaram o planeta.

Hobsbawm – como todo grande pensador – também acumulou críticas ao longo da vida. A maior delas se refere a sua fidelidade ao Partido Comunista (PC), inabalável mesmo durante a Invasão Soviética à Hungria, em 1956. Permaneceu membro do PC até a sua desintegração, em 1989. Outra crítica também comum a Hobsbawm se refere a sua relação com o stalinismo. Para o professor de história da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Ricardo da Costa, Hobsbawm omitiu em suas obras muitas informações sobre os horrores cometido em nome do marxismo-leninismo soviético. (leia esta crítica, na íntegra, aqui).
Hobsbawm segundo os historiadores brasileiros
O Café História conversou com algumas algumas historiadoras e historiadores brasileiras para tentar compreender como Hobsbawm era visto em nosso meio acadêmico. Monica Grin, professora de história contemporânea do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ) desde 1997, explicou que a narrativa de Hobsbawm tem o mérito de não só ter popularizado e historicizado o marxismo para legiões de estudantes, como também se tornou indissociável da própria história contemporânea. Grin sublinhou ainda que durante muito tempo Hobsbawm “frequentou” os seus programas de curso na UFRJ, sendo lido com grande prazer pelos alunos:
Adotei em diversas conjunturas os livros de Hobsbawm. Usei “História do Marxismo – 12 volumes”, “A Era das Revoluções – 1789-1848”, A Era do Capital – 1848-1875” e “A Era dos Impérios – 1875-1914” quando se tratava de aulas para a graduação sobre a emergência do marxismo no século XIX, sobre os desdobramentos sociais da chamada Revolução Industrial e sobre os Impérios e Imperialismos. Não raro, comparava Hobsbawm com Thompson e Polanyi para compreender a história social a partir de uma perspectiva marxista, conforme a historiografia inglesa marxista; com Hannah Arendt para discutir imperialismo. Em outras situações, o tema do Estado nação e do nacionalismo me fazia visitá-lo, quer em “Nações e Nacionalismo”, quer em seu livro com Terence Ranger, “A Invenção da Tradição”. Neste caso também não me furtava às comparações com Gellner, Benedict Anderson, Charles Tilly, Anthony Smith. Cheguei a usar também alguns de seus ensaios em historiografia que saíram em “Sobre história”.
Maria Paula Araújo, também professora do IH-UFRJ, especialista em história do Brasil, especialmente o período da ditadura militar, revela uma memória bastante interessante, que remete a um jantar que ela e mais três amigas tiveram com o historiador inglês nos anos 1980, no Rio de Janeiro, na ocasião do lançamento de um de seus livros no Brasil:
Eu tenho orgulho de dizer que tenho na minha estante quase todos os seus livros. E também tenho na memória uma noite em que eu, Helena Maria Gasparian, Adriana Benedikt e Vera Paiva, nós quatro iniciando o mestrado (acho que isso foi em 1983 ou 84) levamos Hobsbawm para jantar noLamas (tradicional restaurante do Rio de Janeiro). Ele era um dos autores exclusivos da Editora Paz e Terra (do Fernando Gasparian, pai da Helena) e nos coube esta tarefa – levar Hobsbawm e a esposa para jantar. Na época nós achávamos que o Lamas era um restaurante quase sofisticado (estávamos acostumadas com o Jobi, o Diagonal e a Pizzaria Guanabara). Foi uma noite inesquecível. Hobsbawm deu palpite nos nossos trabalhos, até no da Vera, que era sobre a “Lilith” (a primeira mulher de Adão, insubmissa e devassa, que foi banida do Paraíso e da Bíblia).
Maria Paula completou ainda dizendo que embora o encontro tenha se dado há quase 30 anos, não esquece da generalidade e a versatilidade de Hobsbawm, disposto a conhecer e a opinar sobre o trabalho daquelas quatro mestrandas brasileiras de vinte e poucos anos. Já Zózimo Trabuco, professor de História do Brasil da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), afirmou ao Café História que acredita ter começado a ler os textos de Hobsbawm como a maioria dos seus leitores: a partir das “Eras”. “O modo como relacionava as ideias e as práticas sociais às mudanças políticas e econômicas e a visão comparativa dessas relações em diferentes lugares dentro de uma mesma temporalidade sempre me fascinou”, diz o professor. Sobre a história feita de Hobsbawm, Trabuco diz também:
Acho que Hobsbawm representou um modo de compreender a história e o papel do intelectual que se confundem com o conjunto de sua obra e os tempos históricos aos quais ele se dedicou a analisar: grandes sínteses, visão global ou cosmopolita das transformações do mundo, senso de responsabilidade política da pesquisa e da comunicação do conhecimento histórico, e apesar – ou em função – das opções políticas pessoais que fez ao longo da vida, um rigor teórico e metodológico que o fazia ter o compromisso ético de reavaliar ideologias e alternativas políticas que marcaram sua trajetória como intelectual público. Neste sentido, o “Breve Século XX” foi em Hobsbawm o longo século de um modo de fazer História, foi a “Era de Hobsbawm”.
Mas não é só entre professores que Hobsbawm é referência. Entre estudantes de história também. João Teófilo, estudante do nono período do curso de história da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), na cidade de Sobral, disse que ficou muito triste quando soube da morte do historiador, por quem tinha grande admiração. Teófilo explicou que os textos de Hobsbawm estavam presentes nos cursos de sua faculdade e revelou porque gosta tanto dos textos do autor:
Os escritos de Hobsbawm, embora de uma linguagem complexa, são de uma riqueza ímpar, uma vez que a maestria do historiador, de uma erudição invejável, mais que proporcionar um entendimento inteligente que nos ajuda a refletir sobre a relação do homem com o tempo-espaço, serve de exemplo para uma escrita exemplar da História. As leituras de Hobsbawm, a exemplo de “A Era do Extremos”, deixam claro que, não por acaso, ele é um dos maiores historiadores.
Historiador versátil, internacional, próximo do grande público e revolucionário do ponto de vista historiográfico. Hobsbawm nos deixou neste ano de 2013, mas sua obra, vasta e diversificada, é a sua herança mais duradoura. Certamente, continuará formando gerações e mais gerações de historiadores. Quer suas teses sejam mais ou menos aceitas, sua obra é incontornável. Característica típica dos grandes historiadores.

Bruno Leal Pastor de Carvalho – doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisa os seguintes temas: criminosos nazistas, mídias sociais e divulgação de história. É fundador e editor do Café História. Atualmente, é pós-doutorando em História Social pela UFRJ.