“Tres pasiones, simples, pero abrumadoramente intensas, han gobernado mi vida: el ansia de amor, la búsqueda del conocimiento y una insoportable piedad por los sufrimientos de la humanidad. Estas tres pasiones, como grandes vendavales, me han llevado de acá para allá, por una ruta cambiante, sobre un profundo océano de angustia, hasta el borde mismo de la desesperación” — Bertrand Russell

18/4/12

A sombra de uma dúvida

Luiz Roberto Da Costa Júnior

Especial para La Página
O mestre do suspense Alfred Hitchcock (1899-1980) nasceu na Inglaterra e teve uma rígida formação católica durante a sua infância. Hitchcock entrou para o mundo do cinema, na década de 1920, como autor de roteiros, depois se tornou assistente de direção e começou a dirigir seus próprios filmes no fim da década de 1920 e durante toda a década de 1930, que marca a fase inglesa de sua carreira como diretor de cinema. Em 1939, seu prestígio internacional levou-o para Hollywood, nos Estados Unidos, onde dirigiu vários clássicos do suspense durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Durante o longo período em que morou nos Estados Unidos, Alfred Hitchcock viveu na cidade de Santa Rosa, Califórnia. Na década de 1970, após retornar para a Inglaterra ainda dirigiu mais dois filmes.

A ideia de fazer o filme A Sombra de uma Dúvida surgiu a partir de uma história de Gordon McDowell inspirada no caso real do assassino em série Earle Leonard Nelson (1897-1928) que, quando criança, havia sofrido um acidente de bicicleta e se chocado com um bonde. Após isso, ele sofreu uma enorme mudança de personalidade. Cometeu pequenos crimes e começou a matar mulheres nos Estados Unidos. Um suspeito usando roupas similares a dele, chegou a ser preso, mas solto depois que ele cometeu outro crime. Após fugir para o Canadá e cometer outro crime, Earle Leonard Nelson foi preso, julgado, condenado e enforcado em Winnipeg, no dia 13 de janeiro de 1928.

O roteiro do filme A Sombra de uma Dúvida foi escrito por Alma Reville (a esposa de Hitchcock), Thornton Wilder e Sally Benson. O escritor Thornton Wilder (1897-1975) recebeu três prêmios Pulitzer, um pelo romance The Bridge of San Luis Rey (adaptado para o cinema em 1929, 1944 e 2004)  e dois pelas peças de teatro The Skin of Our Teeth e Our Town. Nos créditos iniciais do filme A Sombra de uma Dúvida, o diretor Alfred Hitchcock agradece a inestimável colaboração de Thornton Wilder para a realização do filme.

Joseph Cotten (1905-1974), ator que trabalhou em muitos filmes do diretor Orson Welles (1915-1985), foi escolhido para o papel de Tio Charlie. Tereza Wright (1918-2005) foi escolhida para o papel da jovem Charlie. Embora com 25 anos na época, a atriz interpreta uma adolescente de 19 anos. Tereza Wright já trabalhara na peça Our Town de Thorton Wilder. No cinema, era o quarto filme de sua carreira, ela havia sido indicada ao Oscar em seus três primeiros filmes: The Little Foxes (Pérfida), The Pride of the Yankees (Ídolo, Amante e Herói) e Mrs. Miniver (Rosa da Esperança), pelo qual ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 1942.

O filme A Sombra de uma Dúvida estreou nos Estados Unidos em 12 de janeiro de 1943 e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original. Trata-se de um filme noir com cenas expressionistas (influência de Fritz Lang) e que foge do tradicional esquema hitchcockeano da personagem claramente inocente que se torna suspeito e tem que fugir para provar sua inocência e encontrar o culpado.

O filme permite uma séria de nuances interpretativas que serão analisadas no final do ensaio após a descrição do filme.

O filme começa com um homem, vestido de terno preto e gravata preta, deitado na cama de um quarto alugado. Ele está pensativo e segura um charuto na mão. Há muito dinheiro sobre o criado-mudo e jogado no chão.  Mrs. Martin bate à porta e entra no quarto do senhor Spencer. Ela avisa o inquilino que dois homens o estão procurando e que os viu na esquina esperando por ele. Após uma rápida conversa, Mrs. Martin fecha a persiana para o senhor Spencer continuar sua soneca e se retira do quarto. Então, Spencer senta-se na cama, bebe um copo d´água, levanta-se e depois quebra o copo ao atirá-lo no chão. Ele anda pelo quarto e olha pela janela e vê os dois homens na esquina. Spencer então pega o dinheiro, o charuto, coloca o chapéu, sai do quarto e depois pela porta de entrada da casa de número 13. Spencer caminha em direção aos dois homens, passa por eles e caminha em direção a uma esquina e vira à esquerda. Os dois homens o perseguem e o procuram num terreno baldio, mas Spencer repentinamente aparece no alto de uma construção, longe do alcance deles.

Depois de escapar dos seus perseguidores, Charles Spencer Oakley aparece ao telefone e passa um telegrama para a irmã Mrs. Newton em Santa Rosa, Califórnia.  No telegrama, ele avisa a irmã que chegará na quinta-feira para passar uma temporada com a família e manda um beijo do tio Charlie para a jovem Charlie. Enquanto isso, na pacata e tranquila cidade de Santa Rosa, a jovem Charlie está deitada em sua cama em um momento de reflexão e pensando na vida, após concluir o High School (correspondente ao nosso Ensino Médio). Quando toca o telefone no andar de baixo da casa, sua irmã Ann atende, mas não anota o teor do telegrama por não ter um lápis à mão e estar muito concentrada lendo o livro Ivanhoé, romance do escritor britânico Walter Scott (1771-1832), publicado em 1819.

Mr. Newton chega em casa e sobe as escadas até o quarto da filha. O pai quer saber se está tudo bem com ela e Charlie reclama da monotonia da vida. Logo em seguida, Mrs. Newton também chega ao quarto e pergunta se está tudo bem com a filha e, logo depois, depois o casal desce as escadas. Ann avisa a mãe sobre o telegrama e ela recebe a notícia que o irmão dela chegará em breve.

Enquanto isso, a jovem Charlie havia pegado um casaco no armário, descido as escadas, saído de casa e decidido enviar um telegrama para a única pessoa que poderia tirá-la daquela monotonia. No momento em que a jovem Charlie está escrevendo o telegrama, a telegrafista avisa que há um telegrama para a mãe dela. Ela abre o telegrama e descobre que, como se fosse telepatia, seu tio Charlie estava chegando para passar uma temporada com a família.

No trem que partiu da Filadélfia, Pensilvânia, e que vai fazer uma rápida parada em Santa Rosa, Califórnia, vemos o diretor Alfred Hitchcock fazendo sua rápida aparição no filme ao segurar treze cartas (2 a A de espadas) numa partida de bridge com um médico e sua esposa em férias (não se vê se há uma quarta pessoa na mesa). O trem chega à cidade expelindo uma espessa fumaça pela chaminé da locomotiva que faz uma enorme sombra sobre a estação.

Tio Charlie é o único a descer e sua sobrinha corre para abraçá-lo na estação. A família feliz carrega suas malas. Mrs. Newton ficara em casa preparando o jantar para o irmão e, quando ela escuta o carro chegar, abre a porta da casa e sai muito feliz para encontrá-lo depois de tantos anos sem vê-lo. Charlie chama a irmã pelo nome de solteira: Emma Spencer Oakley, a garota mais bonita da rua Burnham, endereço de uma cidade em Massachusetts, quando eles eram crianças e moravam com os pais.

Tio Charlie é levado por Mr. Newton (seu cunhado Joe) até o quarto da sobrinha que fez questão de cedê-lo ao tio e, para isso, ela teve que se acomodar no quarto ao lado com a irmã Ann. Tio Charlie, então, tira o chapéu e ameaça colocá-lo na cama quando o cunhado o alerta que não se deve desafiar a sorte, pois chapéu em cima da cama provoca azar. Sozinho no quarto, ele olha a foto da formatura da sobrinha, coloca uma flor na lapela, olha pela janela da pacata e tranquila cidade de Santa Rosa e atira o chapéu sobre a cama.

No jantar em família naquela noite de quinta-feira, tio Charlie presenteia a irmã com uma estola, o cunhado com um relógio de pulso, a sobrinha Ann com um coelho de pelúcia. Tio Charlie entrega também para a irmã um porta-retrato com as fotos de 1888 dos avós das crianças. O menino caçula Roger exclama com admiração que as fotos tinham 53 anos. Isto situa a história contada no filme em 1941 (embora o filme tenha sido rodada em 1942 sendo que a estreia no cinema foi em 12 de janeiro de 1943). Tio Charlie afirma que o ano 1888 era muito diferente e que era um prazer ser jovem naquela época. 

Tio Charlie tenta entregar o presente para a sobrinha, mas ela não quer receber presente nenhum, mas o tio a segue até a cozinha. Ela afirma para o tio que ter como nome (Charlie) o apelido do tio (Charlie) os fazem ser parecidos. Não são apenas tio e sobrinha, pois há algo além disso, e ela afirma para o tio que, como ele, não conta muitas coisas para as pessoas. Além disso, há algo dentro dele que ninguém sabe, mas que ela vai descobrir.   

Finalmente, tio Charlie entrega um anel de esmeralda para a sobrinha. Após agradecer e ver o anel com mais atenção, ela percebe que há uma inscrição “Para T.S. de B.M.” A sobrinha fica intrigada e passa a cantarolar uma música antes do término do jantar, mas não se recorda do nome. Quando finalmente lembra-se de ser “A Viúva...”. Tio Charlie derruba uma taça de vinho na mesa.

Após o jantar, Tio Charlie está lendo o jornal e fica muito incomodado com uma notícia. Ele, então, chama as crianças para brincar e faz uma casa de jornal. Após sumir com as páginas 3 e 4, ele enfia a folha do jornal no bolso do paletó e sobe para o quarto. Depois, a sobrinha sobe até o quarto e leva uma bandeja com jarra d’água e copo para o tio, quando percebe que a folha do jornal sumida está dobrada no bolso do paletó do tio que está pendurado na cadeira. Ao pegar a folha do jornal de surpresa, a sobrinha deixa o tio furioso e este agarra o braço da jovem com força e não permite que ela leia a notícia do jornal.

No dia seguinte, Tio Charlie está tomando seu café da manhã na cama quando recebe a notícia de que a família foi escolhida pelo National Public Service para uma pesquisa nacional, por ser representativa do que é uma típica família americana, e que haveria entrevistas e iriam ser tiradas fotos da casa e da família. Tio Charlie avisa a irmã que não quer ser incomodado e nem tirar fotos. Ele afirma que nunca tirou fotos, então ele é lembrado que há uma foto dele guardada em casa. A sobrinha pega um porta-retrato com a foto do Tio Charlie quando era garoto, tirada no Natal quando ele ganhara uma bicicleta e sofrera um acidente ao escorregar no gelo e bater num bonde.

Terminado o café da manhã, Tio Charlie caminha pelas ruas da cidade com a sobrinha em direção ao banco, onde trabalha o cunhado dele (Joe). Ao atravessar o corredor do banco, ambos passam por um banner preto com uma figura de branco no centro com 13 estrelas em volta dela. Ao chegar ao guichê, Tio Charlie pergunta ao cunhado, de maneira sarcástica, se este poderia parar de fazer desfalques ou manipular a escrituração bancária dos balancetes, pois ninguém sabe o que acontece portas adentro. Após ficar sem graça com as insinuações, o cunhado vai até a sala do gerente verificar se este está disponível para atender Tio Charlie para a abertura de uma conta com 40 mil dólares. Após a assinatura da ficha e dos detalhes legais, Tio Charlie volta com a sobrinha para casa.

Dois homens aguardam num carro em frente à casa e se apresentam para tirar fotos e entrevistar a família. Tio Charlie sobe as escadas e procura se esconder deles. O homem que carrega a máquina fotográfica consegue tirar uma foto do Tio Charlie no corredor do segundo andar e este exige a entrega do filme. Os dois homens vão embora, mas antes o outro homem, o entrevistador, pede permissão a Mrs. Newton para sair com a jovem Charlie.

A jovem Charlie sair para passear, jantar e depois senta no banco da praça para conversar quando descobre horrorizada que o homem com quem passou horas conversando era, na verdade, um investigador de polícia que considera Tio Charlie como suspeito de ter cometido um crise na costa leste do país e fugido para a costa oeste do país.

Após voltar para casa, a jovem Charlie fica perturbada com a ideia de seu tio ser um criminoso e sai andando pelas ruas em direção à biblioteca municipal e chega no exato momento em que esta está fechando ao badalar do sino da igreja às 9 da noite. A bibliotecária, ante a insistência da jovem, permite que ela consulte um jornal após repreendê-la pela inconveniência de sua atitude. A jovem Charlie senta-se e começa a folhar o jornal e descobre horrorizada que há uma caçada nacional em busca do assassino de três viúvas ricas. A última vítima tinha sido Thelma Schenley, viúva de Bruce Matthewson, cujo assassinato ocorrera em Gloucester, Massachusetts em 12 de janeiro. A jovem Charlie, desconsolada, tira o anel do dedo e lê a gravação: “Para T.S. de B.M”. Ao se levantar para ir embora,  a câmera se afasta dela para acentuar o abandono e a solidão da jovem Charlie no meio da biblioteca.

No dia seguinte, a jovem Charlie fica trancada em seu quarto e não vê nem o tio e nem o investigador de polícia. Ela desce apenas para o jantar e insinua que sonhou com o tio indo embora de trem. Tio Charlie desconversa e acerta com a irmã Emma para ir ao clube de mulheres, que é presidido pela esposa do gerente do banco, a fim de dar uma palestra no domingo à noite. Durante o jantar, Tio Charlie refere-se às mulheres viúvas ricas como inúteis, que bebem, comem e jogam bridge toda noite e cheiram a dinheiro. Orgulhosas de suas joias, mulheres horríveis, enrugadas, gordas e mesquinhas. Animais gordos e horripilantes que não são seres humanos. A irmã responde que ele seria linchado se fizesse um discurso desse tipo no clube de mulheres.

Ainda durante o jantar, quando um amigo do pai chega para conversar sobre o hobby deles (venenos e assassinatos em livros de literatura policial), a jovem Charlie tem uma explosão emocional e sai correndo da casa. Tio Charlie a segue pelas ruas da cidade de Santa Rosa, ambos entram no bar Til-Two, onde há “mesas para senhoras”, muito frequentado por militares. Ao começar a conversa, Tio Charlie usa de irônia e fala para a sobrinha que eles são almas gêmeas e que lhe conte o que está acontecendo com ela.
A jovem Charlie tira o anel do bolso, coloca-o sobre a mesa e pergunta para o tio como ele pôde fazer tudo aquilo. Ele a confronta perguntando se ela pode concluir algo porque leu uma notícia de jornal e tem um anel com uma gravação. Ela não sabe que o mundo é um inferno, pois vive o cotidiano e a monotonia de uma tranquila cidade pequena sem preocupações onde pode dormir tranquilamente e ter seus ingênuos sonhos.

Tio Charlie e a sobrinha voltam para casa. Ele pede um tempo para a sobrinha, que esta o ajude, pois a família era a última esperança dele, para evitar ser preso o que significaria a cadeira elétrica.

Após a missa no domingo de manhã, o investigador e o fotógrafo esperam para falar com a jovem Charlie na saída da igreja. Ann chama a irmã e depois conversa com o investigador, enquanto o fotógrafo revela à jovem Charlie que ele trocara os rolos de filme e a foto do tio dela havia sido enviada para a costa leste do país para ser identificada pelas testemunhas. Caso a identificação fosse positiva, ela deveria fazer o tio sair da cidade para que a prisão fosse realizada sem escândalos.

Quando a jovem Charlie chega em casa, ela ouve o pai e o amigo dele conversando no jardim sobre o assassino das viúvas ter sido pego em Portland, Maine. Durante a fuga da polícia no aeroporto da cidade, o suspeito foi atingido pelas hélices de um avião e morreu decapitado, sendo identificado pela roupa que usava com as iniciais CO’H. A jovem Charlie com um rosto imóvel e um olhar fixo confronta o tio que sobe as escadas da casa de maneira despreocupada, mas pára e vê, do alto da escada, a sobrinha de pé e imóvel na entrada da casa e segurando um chapéu.

Durante a tarde de domingo, o investigador conversa com a jovem Charlie e se despede dela no interior da garagem da casa, ambos estão enamorados. Ele vai embora de carro e avisa que tinha deixado endereços e telefones para ela entrar em contato com ele. Por um momento, ela hesita e grita o nome do investigador, que não ouve, ao lembrar de suas suspeitas sobre o tio. Após a partida do carro do investigador, Tio Charlie está imóvel na porta da casa e olha fixamente para a sobrinha que caminha de volta à casa.
No final da tarde, a jovem Charlie vai sair para comprar algumas coisas para a mãe e desce a escada dos fundos da casa, como sempre fazia, quando de repente um dos degraus se quebra, mas ela consegue se segurar e evitar um acidente mais grave, ficando apenas com um tornozelo torcido. Ela então cai em si e percebe que não foi um acidente. Usando uma lanterna, ela volta à noite e verifica que o degrau havia sido serrado para quebrar de maneira proposital. A jovem Charlie então confronta o tio no alpendre da casa e pergunta quando ele vai embora da cidade, mas este afirma que vai permanecer na cidade. A jovem Charlie então o ameaça dizendo que ela mesma o mataria se ele não saísse da cidade.

Ainda naquele domingo à noite, a família se prepara para sair a fim de ouvir a palestra do Tio Charlie no clube das mulheres. Este insiste que todos devem ir de taxi, enquanto ele iria de carro com a sobrinha para ensaiar o discurso daquela noite. Tio Charlie pede para a sobrinha tirar o carro da garagem. Quando ela chega à garagem descobre que o carro já estava ligado, mas a chave não estava na ignição. Em meio à fumaça, ela desfalece após esmurrar a porta e ao gritar por socorro, pois a porta estava emperrada, mas por sorte o amigo do pai ouviu os gritos de socorro após passar pela garagem e antes de chegar para ver o amigo e avisa a família dela. Todos saem correndo e Tio Charlie entra na garagem coloca a chave de volta na ignição, desliga o carro e pega a sobrinha nos braços e a retira da garagem. A jovem Charlie recupera os sentidos e pede furiosa para ele ir embora da cidade. Tio Charlie ainda tenta obrigá-la a beber um pouco de sua garrafa de uísque, mas ela recusa temendo ser envenenada por ele.

Finalmente, todos vão à palestra, menos a jovem Charlie que fica sozinha em casa. Ela, então, vai ao quarto do tio e faz uma busca até encontrar o anel. Quando a família retorna da palestra está acompanhada de vários convidados que elogiam Tio Charlie pelo melhor discurso proferido em anos na cidade e pela generosa doação para ajudar as crianças da cidade. Quando a jovem Charlie é chamada da sala de estar, ela responde e desce as escadas com o anel no dedo. Tio Charlie percebe e anuncia, após um brinde de despedida, que recebeu uma carta e tem que partir na manhã seguinte para São Francisco.

A família se despede do Tio Charlie na estação de trem, mas ele pede para a sobrinha esperar, pois ele queria conversar com ela, junto à cabine dele, antes da partida do trem. Quando este então começa a mover-se, Tio Charlie agarra os braços da sobrinha com força e ameaça jogá-la do trem. A jovem Charlie consegue segurar-se na porta com uma mão e é o Tio Charlie quem cai na frente da composição de trem que vinha na direção contrária e morre esmagado por ela.

Na última cena, o investigador chega para a missa e conversa com a jovem Charlie na porta da igreja. Segundo ela, o tio considerava o mundo um lugar horrível, não confiava nas pessoas, odiava o mundo inteiro e dizia que as pessoas não sabiam como o mundo era de verdade. O investigador afirma que o mundo não é tão ruim assim, mas se deve vigiá-lo de perto, pois de vez em quando este enlouquece como o tio dela.

Várias Nuances Interpretativas

O diretor Alfred Hitchcock para marcar sua ambientação nos Estados Unidos utilizou a própria cidade em que vivia como cenário do seu filme A Sombra de uma Dúvida. Há vários elementos no filme que permitem ver aspectos religiosos colocados pelo diretor. Quando Tio Charlie quebra o copo no quarto alugado, isto significa que ele decidira reconstruir sua identidade em outro local (simbolicamente os pedaços quebrados determinam o fim de um momento para reconstruir uma nova identidade em outro lugar). Ao sair pela porta há o número 13, cujo significado leva a uma associação com o demônio. A identificação com a chegada do demônio à cidade é reforçada pela espessa fumaça preta, na chegada do trem, que faz uma enorme sombra sobre a estação de trem da cidade de Santa Rosa, fato mencionado por François Truffaut no livro de entrevistas com Alfred Hitchcock (p. 92) e cuja intenção foi confirmada pelo diretor inglês.

O confronto do tio com a sobrinha na parte final do filme mostra a queda da escada como a perda da inocência (expulsão do paraíso) por parte da jovem Charlie. Na cena em que a sobrinha está presa nas trevas da garagem, o tio está sob a luz da sala de estar, na segunda tentativa de matá-la. A terceira tentativa ocorre na estação quando o trem, que foi a salvação de Tio Charlie no início do filme, transforma-se em sua perdição, isto marca o confronto final entre o bem e o mal. Por contraste com o início do filme, há agora uma pequena fumaça branca que sai da chaminé do trem.

De maneira engenhosa, Alfred Hitchcock colocou várias referências ao vampirismo no filme. Tio Charlie está deitado de preto no início do filme como se estivesse num caixão. Não gosta de luz e apenas se levanta após a persiana ser abaixada. Ao sair da casa e fugir por um terreno baldio sem saída, aparece rapidamente no alto de uma construção, como se tivesse alçado voo. Sua relação com a sobrinha apresenta momentos de telepatia como no caso do telegrama e quando ela cantarola a operata A Viúva Alegre de Franz Lehár (1870–1948), música que atraiu muito a atenção de Adolf Hitler para o compositor e que arranhou a reputação deste após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Além do fato de Tio Charlie não gostar de tirar fotografias, a cena que comprova a colocação do tema de vampirismo no filme é quando, após sair da igreja, a pequena Ann conversa com o investigador sobre Drácula. Além disso, no início do filme, Tio Charlie viaja da Pensilvânia para o oeste, assim como Drácula viaja da Transilvânia para o oeste.

Outra interpretação importante do filme é quando Tio Charlie faz críticas ao governo, ataca os bancos e faz um violento discurso contra viúvas ricas que merecem a morte. Além disso, há o fato de ele ter distribuído (dando de presente) bens da viúva morta, como a estola e o anel, o relógio do falecido marido e brinquedo das crianças. Quando insinua para o cunhado no banco que ele pode ficar com o cargo do gerente do banco, há uma mensagem subliminar na cena. Quando o cunhado move-se para sair da sala do gerente do banco, atrás da sua cabeça aparece a palavra (BUY) num quadro de parede ao fundo, como se a cabeça dele pudesse ser comprada por interesses financeiros. Tudo isso pode ser comprovado pela frase final no filme que é dita pelo investigador para a jovem Charlie e que mostra a importância de combater a semente do nazismo: o mundo não é tão ruim assim, mas se deve vigiá-lo de perto, pois de vez em quando este enlouquece como o tio dela. Parte-se do particular (a cidade) para explicar o geral (o mundo).

A interpretação psicológica do filme nos mostra a relação de amor platônico entre o tio e a sobrinha, mas que são almas gêmeas. Enquanto ela é o mundo da inocência, ele é o mundo adulto da culpa. Conhecer a alma de alguém é descobrir o oculto na personalidade do outro. As cenas de olhar fixo com rosto imóvel versus rosto móvel com olhar flexível entre os dois personagens em duas cenas, além das longas sombras no chão, mostram a utilização do expressionismo muito usado por Fritz Lang.

O jogo imaginário de assassinatos, em decorrência da leitura de romances policiais, do pai com seu amigo tem um paralelo no jogo real do tio com a sobrinha. O amigo do pai, que tanto pensa em como matar alguém, acaba sendo a pessoa que dá o alerta para salvar a jovem Charlie que está sufocada pela fumaça na garagem da casa.

O confronto entre o bem e o mal é o embate entre a luz e as trevas, como o conhecimento versus a ignorância. Ao se adquirir conhecimento perde-se a inocência. A pequena Ann é a personagem que tem muito conhecimento pelos livros, mas por ser criança ainda não desenvolveu a maturidade que se adquire com a experiência de enfrentar a realidade do mundo. A jovem Charlie que caminha para abandonar a inocência e entrar no mundo adulto passa pela provação de descobrir a culpa do tio e, assim, perde a inocência. Viver é sempre uma luta entre a luz e as trevas. A luz equivale ao ser e à unidade. As trevas, a aparência e a duplicidade. Segundo Jean Douchet, na revista Cahiers du Cinema, o suspense é a espera de uma alma entre duas forças (a Luz e as Trevas), havendo a dilatação do presente, que está retida entre dois futuros iminentes e contrários. O suspense nos filmes de Hitchcock muitas vezes utiliza a batalha entre a luz e as trevas para marcar a suspensão do tempo e, assim, prender a atenção da audiência do público no cinema.

O mundo nos filmes de Hitchcock é marcado pelo estado permanente de instabilidade, incerteza e dúvida. O olhar do policial em seus filmes é sempre marcado pela aparência do senso comum, cabendo ao herói sair do mundo das aparências e reencontrar a verdade e trazê-la à luz. Nosso conhecimento do mundo é sempre incompleto, pois não temos todas as informações que permitam uma ampla análise do quadro geral e, por isso, estamos sempre à sombra de uma dúvida...